31 de dezembro de 2016

João Calha: postal de bons anos

Domingos vai rompendo o denso nevoeiro, a um palmo do nariz tudo se esfuma a dois nada se enxerga, a samarra que leva vestida, com a gola de pele de raposa levantada, protege-o da friagem da noite, no bolso falso do lado esquerdo, o do lado do coração, vai o lindo postal que comprou na papelaria do senhor Augusto, onde escreveu os costumeiros versos. Na praça de D. Pedro V, onde caminha, os globos de iluminação pública lembram candeias em que o azeite se está a acabar, tal a cerração que os envolve. O relógio da torre dá os três quartos para a meia noite, falta um quarto de hora para o ano velho acabar, aquela música que ouve vem do clube dos ricos onde há grande função. A sua festa será amanhã na noite de ano bom, já se imagina com Florinda nos braços a dançar ao som da orquestra. Falta pouco para soarem as doze badaladas, quando chega à casa da destinatária do postal que, com tanto empenho, ali leva, detém-se um pouco frente à porta, que tem uma pincelada de cal fresca, sinal que já lá deitaram bons anos, meteu o postal pela fisga da porta onde dá uma pancada forte e pisga-se dali. Torna à sua casa deita-se, anseia pela noite de amanhã, essa sim é que irá ser uma grande noite.
Vestido com o seu fato novo, gravata com o alfinete de ouro posto, Domingos sobe as escadas da Sociedade Artística Popular onde está prestes as começar o baile, que a direção da instituição oferece aos seus associados e amigos, para comemorar a entrada do novo ano, o ano bom. Relanceia o salão de baile lá está Florinda, com a mãe um pouco atrás, mesmo ao lado do estrado da orquestra. A “troup jazz os Sintras”, o conjunto musical que vai abrilhantar o baile daquela noite, toca os primeiros acordes de uma marcha que abre a soirée dançante, Domingos em passo resoluto cruza o salão em diagonal abeira-se de Florinda fazendo uma discreta vénia, a mãe interpõe-se entre os dois e diz-lhe que filha já está comprometida, por uns instantes sente que o chão lhe foge, atónito, agora, por entre os pares que já rodopiam na sala, faz o percurso inverso. No bar tenta afogar a mágoa num cálice de anis, mas nada, aquilo está a doer demais. Espreita o salão de baile, Florinda dança nos braços de um outro, um tipo do concelho de Marvão, filho de um negociante do Porto da Espada. Domingos nada mais ali tem que fazer, sai para a noite fria sem rumo certo.
Os primeiros dias do mês de Janeiro, cinzentos e chuvosos enegrecem, ainda mais, o desgosto que atormenta Domingos. Faltam poucos dias para o dia quinze, dia de Santo Amaro em que tudo haverá de se esclarecer, assim foi, Domingos viu a rapariga e o tal fulano a passearem-se na feira, eram, sem dúvida, namorados. Já tinha tomado uma decisão, amanhã irá à Câmara dar o nome para a Marinha.
Florinda junta os postais de bons anos que recebeu, relê o que Domingos lhe escreveu, e guarda-os numa caixa de sapatos que coloca sobre o guarda vestidos.
Muitas lágrimas choradas pela mãe, mas nada demoveu Domingos que já tem guia de marcha para se apresentar no quartel da marinha em Vila Franca, deixa de ser alvanéu passa a segundo grumete recruta. Já arvorado em primeiro marinheiro irá navegar por longínquos oceanos e desembarcar em distantes portos.
Por cá os ventos não sopram de feição à rapariga, o que prometia vir a ser um auspicioso casamento transforma-se num rol de desassossegos e desgraças. Florinda engravida, o namorado ao receber a nova mostra-se frio e desinteressado, até que um dia desapareceu sem deixar rasto. Uma manhã o pai da infortunada rapariga sai à caça e volta morto, dizem uns por acidente com a espingarda, outros dizem que se matou por desgosto.
Florinda dá à luz uma menina a que deram o nome de Maria da Glória.
O comandante da fragata Afonso de Albuquerque baseada no porto de Mormugão dá ordem para que o navio levante ferro para enfrentar a poderosa força naval inimiga que se aproxima, o fogo do navio português atinge uma fragata da União Indiana que é logo rendida por outro vaso de guerra, o nosso navio começa a ser atingido pela artilharia da esquadra inimiga e envia para Lisboa a mensagem “estamos a ser atacados respondemos” um segundo ataque inimigo e dá-se uma violenta explosão no Afonso de Albuquerque, morre um marinheiro e o comandante português fica gravemente ferido, dá ordens para que o imediato assuma o comando do navio e que não se renda. O primeiro marinheiro Domingos bate-se, como toda a guarnição, com heroísmo, naquele inferno de rebentamentos e explosões vem-lhe à lembrança aquele dia de Santo Amaro em que decidiu alistar-se na marinha e a razão porque o fez, essa ferida já o tempo sarara, o tempo agora era rápido, marcante, de vida e morte.
Após a anexação das possessões portuguesas do Indico, houveram dias de incerteza quanto ao destino dos militares portugueses. Na primavera seguinte o jornal “Terra Alta” publica na primeira página a fotografia dos militares castelovidenses, que à época estavam na Índia, noticiando que estavam bem e já tinham embarcado com destino a Portugal. Florinda destaca essa página e guarda-a na mesma caixa de sapatos, onde anos antes tinha guardado os postais.
Domingos passa à disponibilidade e retoma a sua profissão de alvanéu na cidade de Almada, como era trabalhador, e competente na sua arte, funda uma pequena empresa de construção civil, constitui família, singra na vida.
Maria da Glória é enfermeira num hospital de Lisboa.
Tocam a finados, como por cá dizemos fazem sinais, duas badaladas foi um homem que se finou. Florinda pergunta a uma vizinha se sabe quem morreu -- que foi um homem cá da vila que morava em Almada que em novo foi militar na Índia. Florinda vai ao seu quarto, sobe, com dificuldade e contra as recomendações do médico que a tinha operado ao joelho, a uma cadeira e de cima do guarda vestidos retira uma velha e empoeirada caixa de sapatos, senta-se com ela na borda da cama: lá estão o postal de bons anos e a folha do jornal. Como teriam sido as suas vidas se, naquele baile na noite de ano bom, a sua mãe não se tivesse intrometido?
João Calha

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