10 de fevereiro de 2019

A massa de pão é a base da boleima:
a escarpiada de Condeixa, o padeiro Samuel, Maria de Lurdes Modesto, Francisca Calha e Belmira Chaves


Há muitos anos atrás, mas mesmo muitos, numa povoação nas faldas da serra de São Mamede uma mulher fazia pão - esse bíblico alimento - com as mãos metidas na massa separou uma porção a que juntou banha de porco, outros dois costumeiros ingredientes acrescentou, açúcar e canela que espalhou sobre a massa, meteu este preparado no forno, provou e soube-lhe bem, os cachopos, esses, até se lamberam. 
Assim, se começou a confeccionar uma simples mas deliciosa iguaria. 
A receita passou gerações e em Castelo de Vide chamam-lhe boleima.



Da escarpiada
Outra mulher, noutra povoação, entre a serra de Sicó e o rio Mondego também em tempos já remotos, também a confeccionar o sagrado alimento teve a mesma ideia da mulher alentejana, fazer um bolo com os mesmos ingredientes, só diferiram a gordura, neste caso usou azeite, e a maneira de adicionar o adoçante e a saborosa especiaria que foram seladas dentro da massa. Toda a sua família provou e gostou, a canalha chorou por mais, a mulher para a sossegar prometeu repetir a mesma receita na próxima amassadura. Estava inventada a escarpiada de Condeixa.

A escarpiada do padeiro Samuel 

Recuo, agora, até ao ano em que casei e fui residir com o meu marido para a vila de Condeixa-a-Nova, como na sede do concelho não conseguíssemos arrendar casa fomos residir numa modesta mas confortável vivenda, por sinal, acabada de construir num lugar denominado Barreira que dista uns três quilómetros da vila, todos os bens de primeira necessidade tínhamos de lá os adquirir excepto o pão, esse, era o senhor Samuel, que tinha uma padaria perto da casa onde residíamos, que o colocava na bolsa que todas as manhãs pendurávamos à nossa porta. 
A Barreira era um lugar pouco populoso onde todos conheciam todos, daí os novos habitantes, que nós eramos, despertarem natural curiosidade, donde vínhamos, o que fazíamos, enfim o costume. Não tardou que o nosso padeiro solicitasse os préstimos do meu marido afim de observar um seu familiar. Volvidos uns dias, numa manhã o senhor Samuel, não se limitou a por o pão na bolsa, bateu também à nossa porta e ofereceu-nos uma travessa de bolos. Provámo-los e dissemos em uníssono -- sabem a boleima --, eram escarpiadas 

A carta da gastrónoma e a boleima da D. Belmira

Nos finais dos anos noventa do século passado a D. Maria de Lurdes Modesto endereçou uma carta à minha sogra que, entretanto, já tinha falecido. Abrimos a carta na qual “a grande dama da cozinha tradicional portuguesa” relembrava a prestimosa colaboração que a D. Francisca Calha lhe tinha dado há uns anos atrás e, de novo lhe pedia os seus préstimos, desta vez para saber a receita das boleimas de Castelo de Vide. 
Resolvi escrever à senhora comunicando-lhe o infortúnio e ao mesmo tempo pondo-me à disposição para lhe enviar a receita pretendida. Assim fiz e, mais do que isso, enviei-lhe uma boleima que encomendei à D. Belmira Chaves, que informada a que pessoa se destinava a confeccionou com redobrado esmero. 
A consagrada gastrónoma ficou de tal modo agradecida e interessada que se deslocou a Castelo de Vide, acompanhada do renomado fotógrafo Nuno Calvet. A porta 31 da rua do Marmelo está encimada com toldo onde se lê “ casa Belmira bolos regionais”. 
Foi por essa porta que aqueles dois ilustres visitantes entraram, lá dentro a afamada pasteleira, que empresta o nome ao estabelecimento, recebeu-os e proporcionou-lhes um privado “workshop” de confeção, não só de boleima mas também de outros bolos tradicionais. 
Tudo a objetiva de Nuno Calvet registou (o resultado deste trabalho de recolha gastronómica pode ser consultado no livro “Festas e comeres do povo português” Mª Lurdes Modesto e outros). Foi, assim, mais um contributo para a divulgação do património gastronómico de Castelo de Vide particularmente da sua deliciosa e celebrada boleima. 
Emília Calha 

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