Após nos termos dessedentado, nestes dias ainda muito quentes, enxugamos
com o dorso da mão a água que nos ficou a escorrer pelo queixo
abaixo, levantamos o olhar e deparamos com uma discreta mas útil placa onde
estão inscritas algumas notas arquitetónicas, o enquadramento histórico, aqui e
ali um laivo de poesia, tudo respeitante à fonte pública onde acabamos de
beber. Aqui para nós, que ninguém nos lê, que contraste com aquele enorme e
inestético painel eletrónico colocado à entrada da praça de D. Pedro V que
artificializa e conspurca a beleza daquela praça. Adiante, pois é sobre a fonte
do Montorinho que vou divagar um pouco. Lendo a informação respeitante a esta
fonte ficamos a saber que se ergueu no ano de 1889. Portanto, nos últimos anos
da monarquia portuguesa quando os dois partidos políticos de inspiração
monárquica, o progressista e o regenerador se alternavam na governação do reino
de Portugal, num período de grande efervescência política, que apelidaram de
rotativismo. E por cá, na nossa terra como foram esses tempos? Passo a
transcrever “…Castelo de Vide é muitíssimo bonito. Seria quase o céu se não
fosse a maldita política. Há aqui pichilins e pataratas como chamam aos
regeneradores e progressistas, que não pensam nem falam desde pela manhã até à
noite, senão em política, política sempre. A política ocupa tanto esta gente
que apesar de Castelo de Vide ser uma vila muito pequena, não há aqui intrigas,
excetuando as intrigas políticas. A eleição de Juiz de uma irmandade é aqui
bastante caso para remexer a vila toda. No outro dia puseram fora da
Misericórdia os pataratas todos; mas eles prometeram vingar-se. Provavelmente
na primeira reunião de qualquer irmandade põem fora dela todos os pichilins. …”excerto
de uma carta, datada de 21 julho 1878, que D. João da Camara escreveu a um seu
tio, e que constitui uma sucinta mas assertiva análise sociopolítica
de Castelo de Vide desses tempos. Assim sendo, os castelovidenses de então, com
o espirito crítico e satírico que os caraterizava, logo atribuíram, à divindade
grega que ornamenta a fonte, o Posídion, seja ao menino e ao peixe, um
simbolismo carregado de sátira política. O menino representava um progressista
(patarata) a ameaçar com o seu tridente um peixe que simbolizava um regenerador
(pichilim).
O nosso Posídion
Chuvas torrenciais, ventos fortes, menos
vezes saraivadas, leves, mas frios, flocos de neve, todas estas intempéries tem
fustigado, ao longo destes cento e vinte e seis anos, o nosso Posídion. Quando
chega o verão suporta calor abrasador, isso é que lhe deve custar pois ele é
uma divindade mais avezada às friagens do mar, mas anos houve que o compensaram
dando-lhe a primazia de ficar no centro dos arraiais dos santos populares.
Apesar de tão desprotegido ele lá continua no cimo do seu pedestal, qual
guardião da boa água que corre nas bicas da sua fonte, que o próprio a deve ter
feito brotar das entranhas da serra. Pois dizem os entendidos em mitologia
grega que Posídon além de outros grandes, e às vezes tenebrosos,
poderes faz brotar água do solo, a que fez brotar do nosso é da boa e da
melhor. A mim, afigura-se-me que o menino o tal de Posídon, chamemos-lhe então
o patarata, já devia ter ouvido rumores que já se conspirava contra a monarquia
numa quinta ali para os lados da Cozinheira, nas arcadas do Manel Marques, na
Carreira de Cima na farmácia do Nascimento. Por isso, deteve no último instante
o tridente que tencionava espetar no peixe o “pichilim” ambos sabiam que já não
valeriam a pena tão violentas lutas, a República já se aproximava, e a passos
largos. © João Calha/NCV (texto e fotos)


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