30 de outubro de 2016

Sabor de Outono: a receita de marmelada de Natília Rosa Timóteo e a nossa

“… Era quando os dias começavam a nascer cinzentos e frescos e a avó tirava dos armários e baús de madeira carcomida as tigelas que, por força do uso, começavam a perder as cores e parte dos rebordos. Enquanto no fogão os pedaços de marmelo se fundiam com as toneladas de açúcar que Natília Rosa Timóteo, despejava sem falsas parcimónias nos panelões, as tigelas iam a lavar no tanque do quintal e, dois dias depois, resplandeciam em todas as janelas da casa e enchiam o vento daquele cheiro agridoce que assinalava o início da estação das folhas caídas.
Durante aqueles dois dias de magia culinária, o neto de Natília Rosa empoleirava-se nas cadeiras e arregaçava as mangas da camisa para ajudar ao descascar e partir os marmelos em quatro partes, que assim mandava a tradição familiar. Depois sentava-se no degrau das escadas que davam acesso ao telheiro e ficava a ver, quieto como um ouriço, enquanto a velha agitava a anca e transpirava para conseguir mexer os panelões com a grande colher de pau. Envolta numa espessa nuvem de vapor doce, Natília Rosa falava sem parar. Salustiano não tinha a certeza de que as palavras desencontradas da avó se lhe dirigissem, pelo que ficava calado no seu canto, temendo irritar aquela mulher severa e doce que lhe chamava “ meu melrinho”.
Quando a pasta acastanhada atingia finalmente o ponto desejado, Salustiano retomava a sua silenciosa colaboração, carregando para a mesa, uma a uma as tigelas da avó. De regresso, voltava a colocar os recipientes nas janelas, esforçando-se por alinhá-los o mais rectamente que as suas mãos eram capazes e guardando de memória o número de ordem de cada malga. No final, quando se preparava para rapar os restos que a avó já não conseguia extrair dos tachos, o pequeno enchia o peito para anunciar:
-- Cinquenta e seis tigelas. Mas a última não ia bem cheia…
Natília Rosa passava-lhe a mão pela cabeça e dizia a frase que Salustiano queria ouvir.
--Essa é para o meu melrinho, que ainda é pequeno….”
In “Portugués Guapo y Matador”, romance de Manuel Jorge Marmelo
Dezasseis tigelas de marmelada* mas todas bem cheias, foi quanto apuramos da laboriosa, e doce, transformação da nossa safra de marmelos este ano. Confecionámo-la um pouco mais tarde do que o habitual porque, lá para os lados da Amieira, a maturação desta fruta de princípio de Outono se atrasou, este ano, umas duas semanas dizem uns que foi a prolongada estiagem, outros que foi a falta de chuva na altura própria. Fosse lá pelo que fosse as tigelinhas com a tentadora e tradicional marmelada já estão guardadas em local arejado para não ganharem bolor. A preciosa iguaria irá durar até… Até que se gaste a última malga. Os doces caseiros ainda não pagam, por enquanto, imposto, mas é preciso consumi-los com parcimónia, não vá pagar-se o abuso do seu consumo desenfreado com uma indesejável subida da glicémia com as consequências nefastas que daí advêm para a nossa saúde, isso é que não . Como tudo na vida temperança é o que é preciso.
Segue-se um pequeno resumo fotográfico da nossa, da minha mulher e minha, receita de marmelada.
Poderá até acontecer que tenhamos oportunidade, de publicamente e aqui em Castelo de Vide, confrontar as nossa receitas de marmelada com a da avó do autor do romance do qual acima se trancreveu um excerto, perdão queria eu dizer da avó do personagem principal do romance Portugués Guapo y Matador. É que andam por aí rumores que o escritor portuense Manuel Jorge Marmelo poderá vir dentro em breve ao nosso convívio a convite do Grupo de Amigos de Castelo de Vide. Se assim for, cá o esperamos.
* marmelada 1-- doce feito de marmelo cozido em calda de açúcar e água, que é peneirado após o cozimento, adquirindo consistência pastosa.
6-- Troca de ternura ou intimidades amorosas
Dicionário Houaiss da língua portuguesa.
É do primeiro significado que estamos a tratar, que não restem dúvidas. Pois de qual haveria de ser?

Outono de 2016


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