“… Era
quando os dias começavam a nascer cinzentos e frescos e a avó
tirava dos armários e baús de madeira carcomida as tigelas que, por
força do uso, começavam a perder as cores e parte dos rebordos.
Enquanto no fogão os pedaços de marmelo se fundiam com as toneladas
de açúcar que Natília Rosa Timóteo, despejava sem falsas
parcimónias nos panelões, as tigelas iam a lavar no tanque do
quintal e, dois dias depois, resplandeciam em todas as janelas da
casa e enchiam o vento daquele cheiro agridoce que assinalava o
início da estação das folhas caídas.
Durante
aqueles dois dias de magia culinária, o neto de Natília Rosa
empoleirava-se nas cadeiras e arregaçava as mangas da camisa para
ajudar ao descascar e partir os marmelos em quatro partes, que assim
mandava a tradição familiar. Depois sentava-se no degrau das
escadas que davam acesso ao telheiro e ficava a ver, quieto como um
ouriço, enquanto a velha agitava a anca e transpirava para conseguir
mexer os panelões com a grande colher de pau. Envolta numa espessa
nuvem de vapor doce, Natília Rosa falava sem parar. Salustiano não
tinha a certeza de que as palavras desencontradas da avó se lhe
dirigissem, pelo que ficava calado no seu canto, temendo irritar
aquela mulher severa e doce que lhe chamava “ meu melrinho”.
Quando a pasta
acastanhada atingia finalmente o ponto desejado, Salustiano retomava
a sua silenciosa colaboração, carregando para a mesa, uma a uma as
tigelas da avó. De regresso, voltava a colocar os recipientes nas
janelas, esforçando-se por alinhá-los o mais rectamente que as suas
mãos eram capazes e guardando de memória o número de ordem de cada
malga. No final, quando se preparava para rapar os restos que a avó
já não conseguia extrair dos tachos, o pequeno enchia o peito para
anunciar:
-- Cinquenta e
seis tigelas. Mas a última não ia bem cheia…
Natília Rosa
passava-lhe a mão pela cabeça e dizia a frase que Salustiano queria
ouvir.
--Essa é para
o meu melrinho, que ainda é pequeno….”
In “Portugués Guapo y Matador”, romance de Manuel Jorge
Marmelo
Dezasseis tigelas de marmelada*
mas todas bem cheias, foi quanto apuramos da laboriosa, e doce,
transformação da nossa safra de marmelos este ano. Confecionámo-la
um pouco mais tarde do que o habitual porque, lá para os lados da
Amieira, a maturação desta fruta de princípio de Outono se
atrasou, este ano, umas duas semanas dizem uns que foi a prolongada
estiagem, outros que foi a falta de chuva na altura própria. Fosse
lá pelo que fosse as tigelinhas com a tentadora e tradicional
marmelada já estão guardadas em local arejado para não ganharem
bolor. A preciosa iguaria irá durar até… Até que se gaste a
última malga. Os doces caseiros ainda não pagam, por enquanto,
imposto, mas é preciso consumi-los com parcimónia, não vá
pagar-se o abuso do seu consumo desenfreado com uma indesejável
subida da glicémia com as consequências nefastas que daí advêm
para a nossa saúde, isso é que não . Como tudo na vida temperança
é o que é preciso.
Segue-se um pequeno resumo
fotográfico da nossa, da minha mulher e minha, receita de marmelada.
Poderá até acontecer que
tenhamos oportunidade, de publicamente e aqui em Castelo de Vide,
confrontar as nossa receitas de marmelada com a da avó do autor do
romance do qual acima se trancreveu um excerto, perdão queria eu
dizer da avó do personagem principal do romance Portugués Guapo y
Matador. É que andam por aí rumores que o escritor portuense Manuel
Jorge Marmelo poderá vir dentro em breve ao nosso convívio a
convite do Grupo de Amigos de Castelo de Vide. Se assim for, cá o
esperamos.
*
marmelada 1-- doce feito de marmelo cozido em calda de açúcar e
água, que é peneirado após o cozimento, adquirindo consistência
pastosa.
6--
Troca de ternura ou intimidades amorosas
Dicionário
Houaiss da língua portuguesa.
É
do primeiro significado que estamos a tratar, que não restem
dúvidas. Pois de qual haveria de ser?
Outono
de 2016
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